quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Conto

O Avesso
(escrito em Uberaba, no dia 13 de outubro de 1988, aos 49 minutos)

Era como se eu virasse mais uma página daquele romance bem água com açúcar.
É, daqueles que a gente sabe que no final, o mocinho fica com a mocinha, sem importar o quanto ele tenha sido o bandido ou ela a 'megera indomável'. 
O famoso "happy end".
No fundo, sabia que o bandido estava mesmo fazendo o papel de mocinho, enquanto a pobre mocinha frágil passava pela bruxa má.
Mas virei a página assim mesmo. Quase desinteressada. 
Quando me dei conta, o enredo fora modificado - a estória agora era outra - senti como se o verão estivesse chegando e o calor no coração gelasse todo o meu corpo.
Ali, tudo era brincadeira, num imenso carrossel de verdade.
Bonitos eram os monstros pregados nas paredes da imaginação, enquanto o certo era tropeçar no amor, depois recomeçar nas esquinas do mundo, irreverente, como se fosse apenas passageira humana numa espaçonave de androides.
Passei os olhos pelas linhas daquela página e descobri que por mais que duvidasse, aquela paixão era o fim de tudo que estava começando.
Era como olhar por uma fresta, de fora para dentro, onde nada se via, já que a luz estava aqui.
Onde o real era meu reflexo no espelho e o sentimento, uma fantasia de carnaval.
Entrei naquele conto, como quem tira o pijama para dormir e, quando terminou, tive apenas que virar a página, reler as notícias do dia seguinte, que eram sempre iguais as do dia anterior, no jornal de hoje, enquanto saboreava o café quentinho da manhã que acabara de tirar da geladeira.
Então, conclui que mesmo estando na página seguinte daquele romance, que mudara a história, o avesso da vida era o meu cotidiano.
A vida em si era a autora daquela aventura, onde o direito não tinha rótulo, mas as personagens só conheciam aquilo que já tinha se apagado, enquanto dali de cima, eu olhava o rio correndo com o tempo e, a cada página virada, trocava também o sentimento de prateleira, colocando-o ora no lugar da amizade, ora no lugar do sexo, por vezes, na repartição do medo, mas sempre era o mesmo, de um lado ou de outro, sempre o amor, capaz de odiar intensamente cada lágrima derramada e sorrir mais tarde, pela lembrança daquela noite onde nem o bandido, nem a megera, puderam estar presentes.
O mocinho então, tomou a mocinha nos braços, afogando-se com ela no Lago dos Amantes, vivendo assim, como em todo conto de fadas, mortos e esquecidos para sempre.